Parece que minhas perguntas anteriores, feitas há uma semana, surtiram mesmo efeito. Uma semana sem nenhum texto postado.
Bem, como convidado pelas antigas donas da casa a fazer parte dela, temo frustrá-las com estes meus escritos - não tenho a menor ideia de como era o antigo Dubitável, e me parece que não se parecia absolutamente de nenhuma forma com o que vocês estão lendo agora. Sou mais um invasor que convidado. Mas, como sinto que há leitores impacientes esperando alguma coisa - qualquer coisa - para lerem aqui, tentarei satisfazê-los hoje, não com algo de minha autoria, mas de alguém que não é alguém que se despreze.
É um fragmento de um texto que se chama "Notas para a recordação do meu mestre Caeiro", escrito por
Álvaro de Campos e publicado pela primeira vez na revista
Presença, de Lisboa, em janeiro de 1931. É um texto breve, no qual Campos relata suas impressões sobre seu mestre
Alberto Caeiro. (Se você ainda não leu a poesia de Caeiro, faça-o com urgência. O mesmo sobre Álvaro de Campos.) A um ponto da narrativa, nos deparamos com um diálogo entre os dois, no qual Campos diz ao outro que ouvira alguém dizer que Caeiro era um poeta
materialista, o que ele não achava de todo um absurdo:
Caeiro ouviu-me com uma atenção de cara dolorosa, e depois disse-me brucamente:
"Mas isso o que é é muito estúpido. Isso é uma coisa de padres sem religião, e portanto sem desculpa nenhuma".
Fiquei atônito, e apontei-lhe várias semelhanças entre o materialismo e a doutrina dele, salva a poesia desta última. Caeiro protestou:
"Mas a isso que V. chama poesia é que é tudo. Nem é poesia: é ver. Essa gente materialista é cega. V. diz que eles dizem que o espaço é infinito. Onde é que eles viram isso no espaço?"
E eu, desnorteado: "Mas V. não concebe o espaço como infinito? Você não pode conceber o espaço como infinito?"
"Não concebo nada como infinito. Como é que eu posso conceber qualquer coisa como infinito?"
"Homem", disse eu, "suponha um espaço. Para além desse espaço há mais espaço, para além desse mais, e depois mais, e mais, e mais... Não acaba..."
"Por quê?", disse o meu mestre Caeiro.
Fiquei num terramoto mental. "Suponha que acaba", gritei, "o que há depois?"
"Se acaba, depois não há nada", respondeu.
Esse gênero de argumentação, cumulativamente infantil e feminino, e portanto irrespondível, atou-me o cérebro durante uns momentos.
"Mas V. concebe isso?", deixei cair por fim.
"Se concebo o quê? Uma coisa ter limites? Pudera! O que não tem limites não existe. Existir é haver outra qualquer coisa e portanto cada coisa ser limitada. O que é que custa conceber que uma coisa é uma coisa, e não está sempre a ser uma outra coisa que está mais adiante?"
Nessa altura senti carnalmente que estava discutindo, não com outro homem, mas com outro universo. Fiz uma última tentativa, um desvio que me obriguei a sentir legítimo.
"Olhe, Caeiro... Considere os números... Onde é que acabam os números? Tomemos qualquer número - 34, por exemplo. Para além dele temos 35, 36, 37, 38, e assim sem poder parar. Não há número grande que não haja um número maior..."
"Mas isso são só números", protestou o meu mestre Caeiro.
E depois acrescentou, olhando-me com uma formidável infância:
"O que é o 34 na Realidade?"