sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O moinho

A frase não poderia soar mais absurda.

Todos os dias atravessava as escadas do prédio e descia as ruas sussurrando suas mentiras diárias no caminho. Ensaios doentios das hipóteses inexatas dos seus mil eus. Repetia agonizantemente cada palavra das vias tortuosas de seus relacionamentos inférteis, cada capricho inventado das orações ficcionais da igreja dos pais, cada palavra côncava e oca de seus poemas falso-amorosos. Todos os dias se retecia nas redes promíscuas e prazerozas da sua vida falaciosa, se ajeitava perfeito num pesado eu de histórias jamais ocorridas, de beijos shakespearianos e amores anistiados. Furtava migalhas das memórias alheias, de rotinas alheias e se costurando na mortalha anestesiante de não se ser, dormia. Um dia deixou perder seus olhos num sorriso não esperado, vestido em cores fabulosas e nas verdades amargamente belas da felicidade. Arrancou sem medo as pálpebras de neblina, preso eternamente pela lamentável deflagração do seu destino enganoso, mas não soube dizer nunca no que aquilo se distinguia dos seus discursos mal-semeados. A felicidade é o teatro dos infelizes, disse.

A frase não poderia soar mais absurda.